dezembro 25, 2009

eternidades



Olhou-a. Os cabelos brancos a esgueirarem-se desgovernados por entre o loiro tingido. As unhas pintadas acenavam como cartão de visita.
O fato, apertado, a fazer-lhe recordar um outro corpo esguio de há uns anos atrás, que se passeava triunfante, a prometer promessas em soltas vagas. No braço, balançava-se festiva a mala cara de pele castanha, brilhante, maliciosa nas suas muitas fivelas douradas.
Olhou-a nos olhos. Não conseguia lembrar-se do nome dela.
E os olhos dela não diziam senão cansaços.
- tudo bem contigo?
- sim, tudo...
- há quanto tempo!
- pois, uma eternidade...
Uma fugaz rajada de vento levantou-se e as folhas das árvores soltaram-se e redopiram tontas em redor delas.
Disseram adeus, que gostaram de se terem reencontrado. Aquela eternidade havia cavado fossos irrecuperáveis e não havia nada mais a dizerem-se. Nem queriam, preocupadas que estavam em distanciarem-se.
Partiram em direcções diferentes, em tempos diferentes, talvez a pensarem como medir eternidades.
A desviarem os olhares das montras espelhadas.
No céu, as nuvens paradas, desocupadas, estavam por estar e a noite começara a vigiar o dia.

(maria)

(imag: quadro da pintora francesa Mo.d)

amores e desamores


Essa noite desceu sobre ela, mais escura que todas as outras. Sem lua. Trazia solidões descompassadas e ecos de passos na calçada, aos quais se juntavam vozes desconhecidas, sussurradas, também gritadas.
Na sala, o relógio marcava o encadear de minutos monocórdicos, cortando o silêncio ensurdecedor e ritmando a sua respiração.
Sentia-se sem rumo. Os planos de anos, caíam definitivamente por terra. Era ela, sozinha, a única personagem no enredado de um guião medíocre, que ela escrevera, a lápis, esquecendo os truques a exigirem versões mais aprimoradas. Viciara-se em sonhos de amores perfeitos, que a arremessavam agora para um desespero, pegajoso e mole. Agarradiço.
A sua vida parara quando, horas antes ele saíra, sem olhar para trás, deixando a porta da rua aberta. Mala na mão. O seu perfume a pairar no ar. O olhar a fugir do dela.
Foram anos de amor e desamor, insultos e reconciliações necessárias, encenações primorosas no seu palco privado. De cedências impostas pelo seu medo da solidão e da perda. A tentar adiar o inevitável, a brincar às histórias felizes.
O seu amor pelo amor era desmedido e louco. O seu temor pela solidão completamente insano.
A casa reduzia-se a uma porta e sentia o mundo a desabar a seus pés.
Regrediu aos cinco anos, à noite em que foi acordada por gritos chicoteados na penumbra e, sonolenta e aturdida, viu o pai a abrir de rompão a porta de casa, atravessando decidido para a escuridão da noite. Lembrou os olhos da mãe, chorosos, submergidos, aprisionados em espanto. Foi a primeira vez, que sentiu o abandono.
Agora, com o seu corpo ainda a sentir o dele, só não sabia como sentir o dela.
Espreitou a rua, procurando o amor. O amor não estava.
Ao longe, um vulto de um homem, carregando uma mala, afastava-se rapidamente. A correr atrás dele, pareceu-lhe vislumbrar uma menina, esforçando-se por acompanhar-lhe as passadas largas.
Qual sinfonia mal ensaiada, a vida uma vez mais desafinava.

29/06/2008
(maria)
Imag Net: quadrodeTamara Lempicka

dezembro 22, 2009

...


Às vezes pareço ser-te tanto
Outras nem assim tanto
E eu só quero chamar-te Amor
E eu só quero abrigar-me nos restos do teu abrigo.
Ser a tua violeta
ainda que não tenhas jardim.
Ser o teu pilar, não o teu pendular a balançar.


E eu só quero reflectir-me em ti
como um luar me iluminasse
te iluminasse.
E eu só quero não te perder sem mesmo chegar a ter-te
Advinho que vai doer.


Dá-me um abraço que hoje não te sinto aqui
(Maria)

dezembro 15, 2009

este é o som da minha tristeza


Sempre que se aproxima o Natal...a melancolia despe-me, e tal como um amante amantíssimo, possui-me suave mas resolutamente.
Mais, de há uns cinco anos para cá, em que se me pendura até nas mãos, numa cumplicidade algo abusiva ousando olhar-me bem nos olhos e quase me cega.
Só talvez agora eu lhe devolva finalmente o olhar e deixe que um vento me empurre aquela lágrima que tem alma.
Lembro os que que amei e que partiram. Lembro sobretudo alguém cuja ausência me acompanhará, eu sei, para sempre, ainda que eu continue, densa e vulnerável, voando pela vida. E, mãe, tenho ciúmes dos anjos que te encantam com os seus cantos.
Sabes, talvez tenha encontrado a tal estrada, de repente num acaso, aquela que valha a pena olhar atentamente...ou não...

depois te direi (podes sorrir com esse lindo olhar zombeteiro...)

(Maria)



dezembro 09, 2009

Simplesmente...apetecia-me hoje, agora, estar aqui.


Apetecia-me estar aqui. A ouvir o teu riso, a sentir a ternura a escorrer mansa e irreversível dos nossos olhos. As mãos soltas, traquinas, a buscarem-se deliciosamente tontas. E, ali perto, um mar que olhámos atentamente para logo a seguir esquecermos, entretidos que estavamos a descobrir-nos. Partimos a seguir rumo a outro mar, que afinal não era senão o mesmo, muito nosso, transfigurado apenas com os nossos sentimentos mais e mais urgentes. Apetecia-me...agora mesmo...estar aqui. No mar do teu olhar deixar-me-ia ir a navegar. É urgente aquele mar. É urgente o teu olhar.
Agora.


(Maria)




(foto by me)

dezembro 05, 2009

sentires

Vai alta a noite. Toda a casa está agora por sua conta.


Dançam as sombras do passado em seu redor, entre linhas.
Fica a observá-las sem olhar, a não querer ver nada: Têm aqui o meu pobre coração dorido, tudo o que tenho. Não devem pedir-me mais.
Contrariamente ao dia, a noite cabe inteira nas paredes da sala e ainda é possível escutar os murmúrios dos segredos partilhados, que já não habitam, apenas ocupam os lugares que podem.
Dói-lhe demais dizer-lhe para ele partir, contudo o silêncio pesa já obstinado, a querer impôr-se.
Não fossem as sombras ondulantes nas paredes, e conseguiria distinguir com nitidez a imagem intemporal, repetitiva e gasta, de dois corpos entrelaçados em flor, duas bocas a amanhecer coladas, e no quadro espelhado dos barcos multicolores, a ternura a escorrer das cores, o desejo a enfunar-lhe as velas. Lá longe, mas a fazer-se perto, um denso manto de nevoeiro a aproximar-se lento, desolador.
Epiderme derme.
Não sabe o que fazer para afastar as sombras. Não sabe se as quer assim tão longe, que só em sonhos as possa ter de volta. Parte-se-lhe o coração de as ter consigo, perde-se-lhe o coração se não as tiver por perto.
Pode ela partir. Directa à cama. Sentir no corpo dela o dele, só , adormecido no fundo do abismo escuro, e adormecer nele os seus sentires escondidos.
Esperar que o dia se reanime num aconchego de abrigo, a oferecer-lhe lesto o toque ardente e afinado do novo amor que, à sua rebelia, teima em amanhecer, resplandecente, com toque de seda.
Corta-lhe o coração a indecisão, que a habita em fogo, quando o encontra, a ele, dentro do seu dia. Não há escolha justa entre o amor e a saudade.
Não sabe como o deixar partir e não está preparada para o deixar ficar. Apenas sabe que não o quer perder. Os seus olhos já só conhecem o caminho dos dele e o jeito do seu riso começa a contagiar-lhe os dias.
Indomável epiderme treme.
Momentos breves em que o intocável pode ser palpável e o fugidio pode fingir ficar.
As manhãs, essas deixaram, há tempos, de ser refrescantes e pedem agora urgentes milagres para ocupar as entrelinhas e tudo o resto.

(maria)
(ImageNet: Chagall, "Le circle blue")

dezembro 02, 2009


Sobra-me tempo quando não estou contigo
O tempo é medido no tempo do teu olhar
profundo
a navegar
fundo
dentro dos meus olhos
O tempo meço-o no tempo que duram os teus lábios
a ancorarem na minha boca
O tempo é o tempo das tuas mãos a fazerem-se quentes
conchas minhas
O tempo conto-o no tempo do teu abraço
a galgar-me o corpo
todo pele minha
tua
O tempo só é tempo
enquanto deitas a tua cabeça no meu peito
Enquanto no teu sorriso
nasce o meu riso
Enquanto no teu corpo se encaixa o meu
feito puzzle
amor-perfeito
Enquanto o meu coração
gosta de ser teu
Sem ti
sobra-me tempo
amor
sem qualquer sentido


(Maria)

(imag Net: Abrazo/Montserrat Gudiol i Corominas)

dezembro 01, 2009

...



Na manhã fria e húmida,
sem ondas mansas ou alteradas por tempestades,
elas lançam-se azougadas pelos céus, as gaivotas.
Deslizando e desfazendo-se nas nuvens,
num vai e vem constante de presenças fugidias já esquecidas.
Num assombro, esgoto-me num olhar.
Na palma da minha mão, escorrega a força do vento.
Mais o tudo e o nada, no sentimento.
Fecho a mão.
Agarro então a manhã.
Sem pressas, deito-me nela a descansar a solidão.
Na magia da janela, lá fora, o mundo inteiro assoma.
Passa a nuvem, passa o mar,
e a espuma.
Passa ainda um areal e até um barco a navegar.
Fico eu.
A sonhar.
Na tela,
para além do horizonte,
solta-se, preso, o meu olhar.
Por fim,
rendido, a enlaçar.

(Maria)
(imag. by me)

estranho amor...

(pintura de SaraVieira, minha filha)


Lembro
os trilhos
descobertos a dois

Lembro
as tuas mãos nas minhas
em concha perfeita e polida

Lembro
os teus olhos de mel
a beijar-me a boca dentro
em mim

Lembro
os dias de chuva
e tu
a fazeres-te gruta para mim
e eu resguardando-me em ti
a fazer-me prenda
surpresa
o teu corpo a fazer-se meu
Inventávamos então o tempo
e as palavras faziam-se nos beijos
Lembro
as tuas mãos suaves nos meus olhos
o teu corpo ardente
sedento
gemia
no meu
e eu feita carne
maré
sol e estrela nua
acolhia-te sequiosa
a dar-me de espanto em espanto
de encanto em encanto
Lembro
Esse tempo de tudo
menos de futilidades
Estranho amor
Dentro dele
só nós bastavamos para nos fazermos felizes
Lembro
Ainda hoje carrego coisas tuas
e tu coisas minhas
É mentira
nunca nos dissemos adeus
No meu peito
no meu corpo
tu habitas
sempre
És assim a minha falta
sou assim a tua falta
conservada no tempo
muito para além do que nos separou
Eu fiquei com o teu aroma na minha pele
tu ficaste com o meu sabor na tua boca
Estranho amor
este
que em dias de tormenta
ainda
guardamos nos bolsos das capas
junto ao coração
Estranho amor
este
que tem madrugadas
ainda
hoje agendadas
Eu sinto
Tu sentes
Eu conto
Tu contas
Estranho amor
este
sem fim
que queremos
mesmo assim
neste nosso sentir sem fim

O amor fez-se para isto
baralhar os dias e as noites
e amarmos como gostamos



(Maria)




fly, fly...

(pintura de Sara Vieira, minha filha)



E por vezes
os sonhos cansados
sentam-se
na espera
do impulso
breve
breve
que os
faça voar


E por vezes
há um não sei quê no ar
assim
assim
que faz o coração num tropeço
em desgosto
desertar


E por vezes
na pele dela
na mão dela
só com ela
num aperto
sem acerto
uma borboleta
flutua fixa
sem sonhar voar


Voa tu
borboleta
vai

deve haver uma maneira de te soltares


(Maria)

de certa forma...simplesmente sombras.

Paro
Fico
não sei se vou
É a sombra
a bambolear no vento
É a dor a aninhar
no meu pensamento
É o labirinto
a fazer-se tamanho
em tão pouco
nada
Vou
e levo a minha sombra
a dançar-me por baixo dos pés



                                                               
de certa forma...olhando esta sombra, fica-se com a idéia que o tédio pode bambolear-se. E revelar-se até refrescante. E que tudo pode caber na entrada de uma qualquer porta decrépita e verde. Se não caíres nos degraus.


(imag. by me)