fevereiro 06, 2011

Dá-me um cigarro?!!

(image: Munch: O Grito)
 


Levanto o olhar até ai preso nos buracos da calçada, que são muitos e sempre prontos a humilharem-me.
Dou de olhos com ele, muita cor castanha naquela figura franzina. Está estanque, inquisitivo, à minha frente. Os seus olhos, em frincha, brilhantes,  percorrem-me, avaliam-me, queimam-me.
Novamente atira-me:
- dá-me um cigarro?.....um cigarro?!! dá-me um cigarro?!!!
Ouço a minha voz, patética, num sussurro:
- por acaso não tenho...mas... um cigarro... não faz bem... é caro...e muito complicada...está a vida...
- o que é que vale um cigarro..?! Eu é que não "valo" nada! Eu não valo" nada, nada... de nada mesmo!
- não... não diga isso, vale sim, todas as pessoas são importantes...
- nãooo!! eu não "valo" nada! a Dra. vale! olhe o seu casaco, a sua mala, esse cachecol... a Dra vale...agora, eu?!! já viu, tenho 40 anos, não tenho casa , não tenho emprego, não consigo emprego, visto roupa que me dão, não tenho família, não roubo, mais valia roubar, sou jeitoso... já viu, Dra? eu sou bonito, não sou? mas nem consigo arranjar namorado e olhe que não tenho sida, nem essas doenças, viu, não "valo" nada, de nada! a Dra vale, ah vale, e o que vale um cigarro??????!!!!! mais vale roubar, ou matar... mais vale estar preso ou morto!
- Não, claro que vale... falava a minha voz a morrer lentamente.
Perante esta chuva em torrente de palavras arremessadas, imparáveis, e a moverem-se directas à fúria libertadora, forcei os ombros a elevarem-se, ensaiei um sorriso, embrulhei-o como pude, girei no calcanhar e afastei-me rapidamente, acenando não sei o quê com a cabeça.
Dez passos à frente, era em grito, aquele eu não valo nada, que ressoava, qual pedrada na calçada.
EU NÃO "VALO" NADA!

Dois dias passados e ainda ouço: EU NÂO "VALO" NADA!

(Estava um sol espaventoso. Eu fiquei com as mãos pesadas, cheias dele, e sem saber o que lhe fazer)

(maria)


3 comentários:

Mel de Carvalho disse...

A questão, Maria, é, em determinados e tão lancinantes momentos, encontrarmos em nós a palavra certa das tantas que, ao longo das nossas formações e/ou vida, nos disseram ser a correcta - não sabemos como, nem quando, nem em que tom... a dor que transborda e que nos chega aos ouvidos e, mais fundo, ecoa em nós, tem o poder alucinante de sinos de mil igrejas ao mesmo tempo: gritam-nos a nossa impotência.

MariahR, o seu texto, tão próximo dos mundos por onde circulo enquanto técnica social, teve a força do grito de Edvard Munch, retrato de andrógena existência, como aqui tão bem relata, num momento de imensa angústia ...
Um cigarro, talvez...

Gratidão, Maria, pela partilha.
~Beijo da Mel

Luísa Vaz Tavares disse...

Um beijinho, Maria!

Anónimo disse...

Brutal, de uma eloquência sem limites.
Vou aceitar como se de uma prenda se tratasse, escreveres no meu dia de aniversário, assim...embora so hoje pudesse visitar-te.
Obrigado Maria!!!
Beijo Moon, do Star